segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Notas de viagem sobre o porto de Manaus

Antes de mais um esclarecimento - estas notas não são sobre o clássico porto construído pelos ingleses em fins do sec. XIX , o grande porto flutuante, mas sim sobre o porto donde partem ( e chegam ) todas as gentes da região, que viajam em condições mais que precárias, durante dias e dias e por onde este vosso humilde narrador já teve o prazer de compartilhar semanas, com as penas e alegrias que a experiência comporta.

Cheguei por uma manhã quente de Maio. Olhei as gentes de perto e de frente como a situação de ex-compartilhante aconselha - no fundo sou um cúmplice . Os pregoeiros da centena de gaiolas, que partirão não se sabe quando ( apenas vagamente para onde ) - aqui tudo tem o peso etéreo das coisa completamente relativas- propõem os melhores preços e prometem os maiores confortos, como se fosse possível tê-los em autocarros velhos como o tempo e apinhados de gente. Sim que o Amazonas é a grande estrada - o Rio Mar como lhe chamava o capitão que primeiro o desafiou em toda a sua extensão - por onde se vai até aos milhentos desvios reticulares que levam o sangue da vida a este enorme corpo vivo que teima em resistir à insensatez dos homens que o desafiam a todo o tempo numa guerra desigual, em que finalmente não haverá vencedores nem vencidos.
Mas voltemos ao porto. Em volta das gaiolas os corpos agitam-se, vão colocando as sua redes no melhor ( menos mau ) local do navio. Trata-se de um exercício complicado, pois as variáveis são muitas a começar pelo calor que se vai fazer sentir durante todo o trajeto, às tempestades rápidas mas com efeitos por vezes devastadores sobre os parcos bens que cada um transporta. A rede delimita o direito de propriedade até ao destino final - Tefé, Parintins, uma comunidade longinqua lá para os confins do rio Madeira, do Purús. De facto toda a gente tem um destino,mal percebendo que o destino de cada um foi desenhado à nascença pela enormidade da Amazónia. Cada viajante é um prisioneiro do Rio, desde o dia em que nasce até àquele em que parte para as brumas destas terras que segundo algumas tribos locais ... Deus se esqueceu de acabar. Com o calor e o peso do ar nem as crianças protestam - perderam essa capacidade e só a retomarão quando se habituarem definitivamente ao ritmo que o Rio lhes irá impôr, sem margem para qualquer acto de rebelião, sequer de descontentamento, apenas algum gemido sofrido no infinito do tempo que aqui se faz sentir. É uma outra dimensão. O reino do peso inexorável do Rio absoluto. Sem ele não se respira, não se come, não se fazem filhos ... não se morre. Lá estou eu a fugir do porto. Os carregadores atiram para dentro das gaiolas toda a espécie de produtos, desde ovos,a cebolas, arroz, óleos, que peixe o rio dá em abundância, mas a faixa de terra aproveitável em benefício próprio não vai além de escassos duzentos metros - depois vem a mata, como lhe chamam, e os seus insondáveis mistérios, lendas, magias, numa palavra inacessível. Mas todos parecem comungar da ideia de que se não pode contrariar a Natureza - são profundamente fatalistas os caboclos ribeirinhos. Avessos a qualquer ideia de mudança. A mata é o seu destino inexorável, inquestionável ... o Rio o seu escravo e seu senhor.
Ali, uma belíssima cabocla com duas crianças às ancas, uma de cada lado, compra uns abastecimentos, pois durante a viagem é preciso alimentar as crias e cada qual tem de cozinhar a bordo. Excepto os que vão de camarote, um cubiclo, por vezes com ar condicionado, terão direito a uns pedaços de frango ( coisas da cidade ) a nadar sobre uma aguada não identificável.
Mais próxima, uma mulher ao leme - terá uns trinta anos, uns olhos fundos como o desejo,olha-me e tem alguma dificuldade em perceber que sou gringo. Sai do barco, salta do trapiche - será que vem ao meu encontro. Não ... mas poderia vir, estou livre para partir sem destino. Esta Amazónia pode tornar-se uma paixão - apenas mais uma. ( vejo que aqui a loja da net quer fechar - são 8 e meia da noite - há muito que aqui é noite ) ( estas notas são também para mim - a memória está gasta !!!!!!!!!! e quero ver se escrevo umas notas mais largas ) .

Só uma nota final: gostaria de falar da noite no porto e dos dos seus corpos inadiáveis, e da música brega que os acompanha, e do amor feito nas esquinas à vista de todos , mas que ninguém vê, porque o amor é invisível. Corpos que se emprestam e se entrozam por momentos fugazes, mas plenos. Homens e mulheres num vai e vem frenético, que o barco de cada um pode partir a qualquer momento. Aqui não há horas, há momentos a viver intensamente em cada corpo que passa.

Junho de 2006